Urgência aprovada, relatoria definida e uma disputa que vai além do plenário
A Câmara dos Deputados acelerou a pauta da anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos a partir de 2022 ao aprovar o regime de urgência por 311 votos a 163. Um dia depois, o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) anunciou a escolha de Paulinho da Força (Solidariedade-SP) como relator do texto. Com a urgência, a proposta pode ir direto ao plenário, sem passar pelas comissões, encurtando prazos e elevando a pressão política.
Paulinho, que preside o Solidariedade e tem perfil de negociador, assume um tema explosivo: onde traçar a linha da anistia. O relatório precisa definir quem seria alcançado (manifestantes de base, financiadores, organizadores, autoridades), quais crimes poderiam ser perdoados e quais ficariam de fora. Também terá de lidar com algo central: o alcance sobre condenações já dadas pelo Supremo Tribunal Federal e sobre processos ainda em curso.
A aprovação de urgência explicitou a divisão entre governo e oposição. O PL de Jair Bolsonaro fechou votação a favor; partidos do centrão se somaram em peso; a base de Lula votou contra. É o desenho de um teste de força com impacto jurídico e simbólico imediato: a Câmara discute se perdoa, e até onde, os atos que culminaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023.
Mapa de votos, o que o projeto pode alcançar e os próximos passos
O placar de 311 a 163 mostrou partidos praticamente em blocos. Segundo o painel da Câmara, votaram majoritariamente a favor da urgência: PL (85), União Brasil (49), PP (43), PSD (28), Republicanos (40), Podemos (12), PSDB (10), Avante (6), Solidariedade (4), PRD (5), Novo (5) e Cidadania (3). Contra: PT (66), PSB (12), PDT (13), PSOL (14), PCdoB (9), PV (4) e Rede (1). Na prática, a oposição impulsionou a agenda e a base governista atuou para freá-la.
Como relator, Paulinho da Força deve apresentar um parecer que pode ir do perdão amplo a uma anistia com restrições. Entre os cenários discutidos nos bastidores:
- Exclusão de lideranças e financiadores, limitando a anistia à “base” que foi às ruas ou aderiu aos atos sem comando direto;
- Exclusão de crimes violentos e contra o patrimônio público, com eventual espaço para perdoar crimes de menor potencial ofensivo (como incitação e desobediência), se o texto optar por um recorte mais restrito;
- Blindagem explícita para crimes insuscetíveis de anistia, como os previstos no art. 5º, XLIII da Constituição (tortura, tráfico, terrorismo e crimes hediondos);
- Regra de transição para processos em curso e para condenações já impostas, definindo como ficam penas, antecedentes e efeitos secundários das sentenças.
Há um ponto sensível: o Congresso tem competência para conceder anistia (art. 48, VIII, da Constituição), mas o desenho jurídico precisa evitar colisões diretas com cláusulas constitucionais e com decisões judiciais já transitadas. Juristas divergem sobre se uma anistia ampla aos crimes ligados ao 8 de janeiro violaria a Constituição ou se seria um exercício legítimo do poder político do Parlamento. Também há debate sobre a tipificação dos crimes do 8/1 — o STF tem condenado réus por “golpe de Estado”, “abolição violenta do Estado Democrático de Direito”, “associação criminosa armada” e danos qualificados; parte da comunidade jurídica discute se houve ou não enquadramento em terrorismo, o que, se reconhecido, é insuscetível de anistia.
Outro ponto prático: uma anistia penal não apaga, por si, efeitos eleitorais definidos pela Justiça Eleitoral. Exemplo: Jair Bolsonaro foi declarado inelegível pelo TSE por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação; isso não seria automaticamente revertido por uma lei penal de anistia. Já no campo criminal, uma eventual anistia poderia extinguir a punibilidade, encerrar processos e afetar penas em execução, se o texto abranger os crimes em questão.
Sobre o status das investigações, o STF já condenou centenas de réus pelos atos do 8 de janeiro, com penas que variam conforme a participação e os crimes reconhecidos. Há ainda autoridades e ex-integrantes do governo Bolsonaro que respondem a inquéritos sobre suposta tentativa de subverter o resultado das eleições. Importante: o ex-presidente não foi condenado criminalmente pelo STF até aqui; ele é alvo de investigações e ações, enquanto no campo eleitoral já está inelegível.
Politicamente, a indicação de Paulinho sinaliza tentativa de costura no centro do tabuleiro. O Solidariedade, embora historicamente alinhado a pautas do movimento sindical e frequentemente próximo do Planalto, apareceu entre as bancadas com votos pró-urgência. Isso aumenta a expectativa por um relatório que tente construir maioria em plenário, talvez com filtros para reduzir atritos com o Judiciário e com a opinião pública.
No rito daqui para frente, a urgência permite que o relatório seja lido e votado diretamente no plenário, a depender de acordo de líderes. O governo pode atuar para adiar a votação ou fatiar o texto. Se aprovado, o projeto segue ao Senado. Em caso de sanção presidencial, não está descartado um controle de constitucionalidade no STF, dada a natureza do tema. Se houver veto de Lula, o Congresso pode derrubá-lo com maioria absoluta nas duas Casas, o que exigiria nova demonstração de força política.
Qual o impacto real de uma anistia? Para os atingidos por penas e processos, seria um ponto de virada. Para o sistema de Justiça, um teste dos limites entre a vontade do Legislativo e a efetividade das decisões judiciais. Para a política, um marco que pode reorganizar alianças em ano pré-eleitoral e cristalizar narrativas opostas: a de pacificação, de um lado; a de impunidade, de outro.
Enquanto o relatório não sai, líderes da oposição pressionam pelo plenário e a base governista tenta desacelerar. O texto de Paulinho terá de responder às perguntas que hoje dividem a Câmara: quem exatamente será perdoado, por quais crimes e com quais efeitos. Sem esse recorte, a urgência pode até colocar o projeto na pauta rapidamente — mas não garante a aprovação de um tema que mexe com o coração da democracia brasileira.